domingo, 5 de outubro de 2008

ricos demarré deci...

O que descobri nestas oficinas de cultura popular que ministrei nas cidades de Jequitinhonha, Araçuaí e Turmalina, pelo ValeMais (Instituto Sócio-Cultural do Vale do Jequitinhonha), é que a riqueza do Vale do Jequitinhonha, tão cantada, falada, estudada, diagnosticada, é, na verdade, maior do que a gente pensa e sabe. Somos ricos, ricos, ricos, demarré marré deci...

Em Jequitinhonha, tive os participantes mais ávidos. Eles estão no ponto de um "ponto de cultura". Povo cheio de energia, querendo realizar as coisas, procurando os caminhos mais bonitos e floridos. Lá, encontramos Dona Elza Có, artesã histórica e mestre do Boi de Janeiro mais antigo do lugar. E tomamos conhecimento da existência de Francisco Rodrigues de Oliveira, o Chico Canoeiro (muitos jequitinhonhenses que estavam na oficina não o conheciam). Pelas minhas pesquisas, ele talvez seja um dos últimos guardiães (e cantadores) de "Beira-Mar" do Brasil.

Perguntamos a ele: _ O que é um Beira-Mar, "seu" Chico?
Ele nos respondeu lindamente: _ O Beira-Mar é um presente que a natureza dá para a canoa...

Chico Canoeiro tem 68 anos e ganhou o apelido de Maria Alice Braga, coordenadora de cultura da Universidade Federal de Ouro Preto, numa de suas passagens pela cidade. Foi marinheiro, homem do campo, empreiteiro e, por fim, canoeiro. Aprendeu o ofício de cantar Beira-Mar com parentes e amigos. O avô era canoeiro que transportava mercadoria entre Araçuaí e Jequitinhonha.

Mais para o final da entrevista, Chico Canoeiro completa: _ Beira-Mar são cantigas trazidas pela natureza das águas e das canoas. Os canoeiros cantavam mesmo é para se alegrarem e alegrarem as pessoas.

O primeiro lugar onde cantou Beira-Mar foi na sua cidade natal, Jequitinhonha, num festival de música. De lá pra cá, continua cantando. Participou, em 2006, de um evento no Palácio das Artes. "Onde sou chamado, vou", diz sorridente.

Tem dois grupos. "Canto do Rio", de Beira-Mar, e "Batuqueiros de Nossa Senhora da Pena", de batuque. Além disso, é Carregador e Cantador de Bandeira, especialmente bandeiras de santo padroeiro. Canta para elas. "A natureza não acaba, mas está muito machucada", nos diz.

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Em Araçuaí, encontramos Zé Pereira, grande articulador local, que tem até um espaço cultural, com uma linda e tradicional caixa de teatro. Um luxo!! Espaço Cultural Luz da Lua. Por ali, passam produções do lugar e do estado.

Araçuaí tem, agora, um cinema: Cinema Meninos de Araçuaí. Os meninos devolveram à terra o que dela levaram para o mundo: arte pura, gratidão...

Encontramos também Josino Medina, grande compositor, parceiro de Dércio Marques e Pereira da Viola. Logo chamamos para uma entrevista e convidamos o violeiro Zé Padre, com sua mulher, uma cantadeira nata, de belíssima voz e timbre, Dona Rita.

Zé Padre toca viola caipira com apenas dois dedos, mas parece que tem uma orquestra tocando. Moram em Tocoiós, comunidade de mais ou menos 50 habitantes, que fica entre Araçuaí e Coronel Murta. Dona Rita me ensinou umas contradanças lindas. Entre elas, uma muito engraçada:

"A mulher precisa comer
precisa beber
precisa apanhar
A mulher que não apanha, ai, ai, meu Deus,
cria asa e quer voar, ai, ai, meu Deus,
eu vou panhá maracujá"

Fiquei encantada com a musicalidade deles. Com certeza, "se Deus der bom tempo", como dizia minha vó, também sertaneja, que se encantou com 91 anos, nós ainda vamos nos encontrar num trabalho que estou preparando sobre as mulheres do Vale e a música. Zé Toca balançando as pernas, com uma leve batida no bojo da viola. As músicas são mântricas, repetindo um mote. Parece música indiana. É um toque delicado, de acentuada dolência sertaneja. Segundo Zé, são toques vindos da sanfona. Tocoiós tem uma produção artesanal de cachaça. A alambicada é branca e a curada é amarela. Muito apreciada na região. Curtida ainda em tonéis de madeira.

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Em Turmalina, encontramos uma turma grande e muito interessada. Conhecemos o mestre candombeiro João Viana e o mestre de folia de reis Gilmar Souza, também grande contador de causo, com seu chapéu feito especialmente para este fim.

João Viana nos deu a honra de falar a respeito da posição do candombe dentro da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, cantou e bateu tambor e ainda dançou com o copo de cachaça em cima da barriga! Uma verdadeira glória, já que o candombe é, na maioria das vezes, batido e cantado apenas entre mestres e homens pretos.

Mestre Gilmar Souza nos deu uma aula completa a respeito da folia de reis, nos explicando mistérios e significados que a gente ignora. Deixo aqui uma poesia sua a respeito de não se poder dar fitas da viola do mestre e o significado das cores das fitas:

O ENFEITE DA FITA
(Gilmar Souza)

Uma moça me pediu
coisa que não posso dar
uma fita de minha viola
pro seu cabelo enfeitar
não é nenhuma desfeita
nem porque desenfeita
ou que não gosto de agradar
mas uma fita de minha viola
isso eu não posso tirar

Você já é bela flor
nem precisa se enfeitar
desculpe não lhe atender
a razão vou lhe explicar
porque com uma simples fita
não posso te presentear

Cada fita de minha viola
é um pedaço da história
mostra a sagrada família
que trago na memória

A Amarela é o ouro
representando a realeza
o poder do Menino Deus
afirmando com certeza
que não há nenhum rei maior
que o criador da natureza

A Vermelha é o incenso
outro presente levado
lembra a promessa de Deus
feita ao povo antepassado
que fazendo o bem na terra
para o céu será levado

O símbolo da fita Roxa
eu vou dizer o que é
lembra as vestes do esposo
de Maria de Nazaré
trabalhador carpinteiro
foi o bondoso São José

Azul é a cor do céu
escute, digo agora
é o manto da mãe de Deus
o consolo de quem chora
ajoelhada aos pés da cruz
se tornou Nossa Senhora

Verde o perfume de mirra
levado ao salvador
com ele que Madalena
lavou os pés do Senhor
e embalsamou o seu corpo
após a morte de dor

A cor Branca é da paz
é o pequenino Jesus
vem trazendo a pureza
enchendo o mundo de luz
quem leva no coração
a paz ao mundo conduz

Não tiro nenhuma fita
para não desinteirar
espero que compreenda
o que acabei de contar
quem segue a família sagrada
sua alma vai salvar

Como dizia Sá Luíza, benzedeira de Araçuaí, que se encantou com 111 anos: "Ô VIDA RICA!"

sábado, 4 de outubro de 2008

em turmalina (médio jequitinhonha)

Oficina de Cultura Popular em Turmalina, pelo ValeMais (Instituto Sócio-Cultural do Vale do Jequitinhonha), set/2008

o mestre candombeiro joão viana e o mestre de folia de reis gilmar , batendo tambor pra nossa senhora do rosário... honra e alegria!!!