terça-feira, 24 de novembro de 2009

Meus olhos marejam...


Eu e TUM TUM TUM abrimos, dentro do projeto Vozes de Mestres (Festival Internacional de Cultura Popular, que em 2009 foi um dos convidados do Centro Cultural do Banco do Brasil - o CCBB Itinerante, percorrendo nove cidades), o show de Egberto Gismonti, no Teatro Alberto Maranhão, em Natal/RN.

Só dessa experiência eu poderia escrever horas sem parar. Começo confessando um bocado de maravilhas que a convivência mais amiúde com Gismonti vem produzindo na minha vida, desde que o conheci pessoalmente há pouco mais de dois anos. Conhecer Egberto foi reconhecer o Brasil que pulsa sem parar dentro de mim e aceitar definitivamente que a única estrada capaz de me levar à Dona Música é a REVERÊNCIA; em todos os níveis.

Ele, vindo do Carmo, uma pintura incrustrada ali na geografia fluminense, com longa estrada de dedicação à Música e ao Brasil. Eu, vinda do Vale do Jequitinhonha, esse lugar onde a vida é pura Travessia, localizado no norte/nordeste do sertão mineiro, também com o meu grau de dedicação ao Brasil e à Música.

Ele vindo de uma família de músicos. O avô Antônio... O "mais grande e espichado" de todos, o tio Edgard... Eu, de uma família de ouvintes de rádio, de um violonista amador, amante de Nelson Gonçalves e de toda a velha guarda do samba brasileiro (meu pai é um quase baiano com o coração ligado no que acontecia musicalmente no Rio de Janeiro, que ainda não conheceu).

No Carmo tinha (e ainda tem?) coreto com direito a ensaios abertos de banda de música na época de tio Edgard. O Jequitinhonha tem (e tinha) congado, folia de reis, caboclinhos, catimbós, tum, tum, tum... Não são dois brasis raros. O-Brasil-é-isso-o-tempo-todo-em-todos-os-lugares. Como diz o próprio Gismonti, "o Brasil é de lascar!".

Para completar o ciclo de amizade à Música, os filhos de Egberto, Bianca e Alexandre, são músicos. Ela, Bianca Gismonti, é pianista. Ele, Alexandre Gismonti, violonista. É um gráfico bonito: vô Antônio, tio Edgard, Egberto, Alexandre e Bianca. E Gismonti no meio desse desenho. É uma posição para lá de muito privilegiada... A de veículo poderoso que recebe e deixa passar...

Pois sim... Continuemos. Eu vi Egberto Gismonti ao vivo apenas duas vezes. Uma em São Paulo, na Virada Cultural 2008, e, agora, essa, no Vozes de Mestres 2009. Ao show de São Paulo fomos em turma. Ele me disse "vocês vão ver um homem e um piano...". Quando soou o primeiro acorde da mão do homem no piano, eu literalmente "entrei" em transe.

A Música "de" Egberto Gismonti não embalou sempre a minha vida. Eu ouvi pouco Gismonti na minha formação musical. Mas desde que passei a ser "ouvinte-voraz", me reconheço inequivocamente nela. Desde que ele me conta as histórias de tio Edgard e vô Antônio, acho que também sou neta e sobrinha destes dois brasileiros; músicos praticamente desconhecidos do Brasil.

O que eu sinto é que a música "de" Gismonti agrega, inclui, estica a possibilidade, amplia o sentimento, cria a fricção necessária ao êxtase completo... Não, não é exagero de fã. Perguntei à Dulce Bressane, sua amiga de longa data, e parceira na Carmo Discos, que o acompanhava no show em Natal, o que ela sentia. Ela me respondeu: "acompanho a carreira de Egberto Gismonti e ouço sua Música há 40 anos; nunca é igual; é sempre novidade para mim; é sempre surpreendente...".

Neste show em Natal, eu derreti... Minha sensação era a de que muitas vezes eu não estava em mim. Era uma dança de inconsciência e consciência... De déa e não-déa. Levitei e me embrenhei em ondas ora de alto frenesi ora de suavidade de nuvem...

Aí, depois dessa experiência "de segundo Gismonti ao vivo", meus olhos deram de marejar quando ouço suas músicas nos you tubes da vida. É como se diz lá no Jequi: "que meus óio mareja, mareja...". Estou, assim, ainda dentro de uma combustão misteriosa que foi produzida em Natal, Rio Grande do Norte do Brasil brasileiro de Mário de Andrade, de Villa-Lobos, de Naná Vasconcelos, que, hoje, encerra o projeto Vozes de Mestres, em Belém, estado do Pará do Brasil brasileiro.

Durante uma entrevista que a gente concedeu à Rádio Universitária daqui, perguntei ao Naná quais foram os mestres dele. Ele disse: "um deles foi Egberto Gismonti; Egberto é a continuação de Villa-Lobos; é um mestre completo; nosso encontro produz muita beleza!".

Fiquei emocionada de ver que meus olhos não marejam sozinhos... Marejam também os de Naná e os da cantora argentina Silvia Iriondo (a Carmo Discos já produziu um disco dela), como vocês podem conferir nesta foto acima (a própria Silvia enviou ao Gismonti, que me enviou), tirada durante um encontro dos dois na Argentina.

Marejam, ainda, os olhos dos músicos que me acompanharam no show em Natal. Todos me confessaram a alegria de tocar no mesmo espaço que o mestre. De Tabajara Belo (violão), André Siqueira (violão e viola caipira de 14 cordas) e Bruno Pimenta (flautas), que ouviram muito Gismonti, a Beth Leivas e Danuza Menezes (percussão e voz). Todos ainda estão encantados e marejados...

Marejam nossos olhos como devem marejar os de muitos outros... Vida longa a Egberto Gismonti que completa 62 anos no próximo dia 5 de dezembro para que ele continue se dedicando a Ele e Ela: ao Brasil e à Música!

Déa Trancoso

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

"É a retirada, é a retirada... Ê meus camarada, ê meus camarada!"



"Eu não sou daqui também,
marinheiro...
mas venho de longe e ainda
do lado de trás da terra,
depois da missão cumprida...
vim só dar,
despedida..."
(Marcelo Camelo)

Se encantou noite passada mestre Gentil do Orocongo, lá de Florianópolis...
Daqui do lado de cá da terra, gratidão eterna do Vozes de Mestres pela presença e partilha de amor pelo Brasil...
Que ele descanse nos campos do senhor...

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

"...porque viestes do barro e ao barro voltarás..."



Aos 85 anos, vividos com a certeza na frente, Izabel Mendes da Cunha, a mestra maior do Vale do Jequitinhonha, vai recebendo o reconhecimento à arte que sai de "sua idéia" e ganha vida através de suas calejadas mãos. Capa da Revista O Globo, do dia 8 de novembro, a "mulher de barro", além de presentear os repórteres com as riquezas de sua trajetória e com as saborosas estórias do lugar, explicita e partilha sua sabedoria de vida e mestrança com o vigor e a precisão de um Rabindranath Tagore ou de um Gurdjieff.

"Tudo já aconteceu com a gente. A riqueza que eu tenho é com a graça de Deus, mas na pobreza já passei muita dificuldade. Pobre não, porque dizem que pobre é o demônio. Mas já passei falta das coisas, e remediava mesmo com a precisão. Você sabe como é que a gente remedeia com precisão? Quando você está com precisão de comprar uma coisa para comer ou vestir, ou um remédio, e não tem condições, aí puxa a calma, passa dois ou três dias precisando daquilo. Lá pelo terceiro dia você amanhece vivo e vai arranjar as coisas. Você não morreu, você remediou com precisão", ensina.

A artesania de Dona Izabel começou cedo e foi virando referência para gerações de artesãos do Jequitinhonha, lugar de grande diversidade cultural, reconhecida no Brasil e no exterior. Em 2004, recebeu o Prêmio Unesco de Artesanato para a América Latina e Caribe (ganhou o primeiro lugar com sua já antológica boneca amamentando) e, em 2005, a Ordem do Mérito Cultural, concedida pelo Governo Federal.

Agora, em 2009, fará a sua primeira exposição individual, que começa dia 7 de dezembro, em São Paulo (Galeria Estação, organizada por Germana Monte-Mór e Vilma Eid), junto com um documentário, de Hilton Lacerda, co-diretor de "Cartola", filmado em sua casa, em Santana do Araçuaí.

É também nome de prêmio: o "Prêmio Culturas Populares 2009 - Mestra Dona Izabel Mendes da Cunha - Cerâmicas", que oferece incentivos de R$10 mil a ela e a 195 selecionados.

"Isso ninguém nunca me ensinou. Tudo que sei saiu de minha idéia. É dom dado por Deus", costuma dizer.

Que se erga um brinde de vida longa a Izabel e a este lugar no mundo chamado Vale do Jequitinhonha!

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Mesa redonda no Vozes de Mestres - CCBB Itinerante 2009 - Natal

eu, Lira Marques, Frei Chico, professor Deífilo e Egberto Gismonti, em foto de Diana Gandra

A mesa em Natal foi de lascar! Fiquei muito alegre. Especialmente com a presença de Lira Marques, artesã, cantora e pesquisadora, nascida em Araçuaí, região média do Vale do Jequitinhonha, minha terra natal. Quando estava anunciando os nomes, me lembrei de uma canção que diz: "flor de lis, flor de lira, por que será que lira gira?", ouvida num dos meus históricos Festivales (Festa da Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha), nos idos da minha juventude.

Lira Marques é, junto com Frei Chico, umas das fundadoras do Coral Trovadores do Vale, pioneiro na pesquisa e no registro de cantigas da cultura popular do Vale do Jequitinhonha, região (de quase 90 cidades), situada ao norte/nordeste de Minas, em pleno sertão das geraes. O Trovadores foi estrada trilhada por muitos corais e artistas que até hoje nascem e atuam na região, no Brasil e no mundo...

"Eu cheguei em casa eufórica: mãe!, o padre está cantando na igreja as cantigas que a senhora canta aqui em casa!", disse Lira na época, feliz da vida. Lira Marques trabalha com cerâmica, desenhos e pedras coloridas. Faz especialmente seres oníricos que ela chama de "meus bichos do sertão". Começou cedo, utilizando a cera de abelha que o pai usava para fabricar sapatos, e, hoje, sua obra já ultrapassou as fronteiras do Vale do Jequitinhonha, ganhando o Brasil e até o exterior.

Já o missionário franciscano holandês, radicado no Brasil, Francisco Van der Poel, o Frei Chico, diz que a gente tem que começar do que o povo já tem. "Ao todo, foram mais de 15 mil folhas registradas com coisas do povo", comenta enfático. Ele está finalizando o "Abecedário da Religiosidade Popular - Vida e Religião dos Pobres no Brasil", de sua autoria, com 8.500 verbetes, que sintetiza as conexões que o povo estabelece com a fé.

O professor Deífilo Gurgel, maior folclorista vivo do Brasil, trouxe para a conversa um nome da maior importância para a história da identidade cultural brasileira: Mário de Andrade. "Poderíamos falar que Mário é a síntese, mas, para falar a verdade verdadeira mesmo, temos que dizer que Mário de Andrade é a própria cultura brasileira".

Professor Deífilo disse que o folclorista é acima de tudo um bom contador de causos. Contou para a platéia uma história de "dívida com o diabo", recorrente na cultura popular e muitíssimo engraçada, que é o motivo das risadas na foto acima. "A cultura popular é coisa muito séria. Ainda vou ver lá de cima, quando eu me encantar, a cultura popular sendo valorizada e estudada com afinco", arrematou.

"O que eu acho mais bonito é que o Vozes de Mestres vai andando pelo Brasil plantando sementes de amizade e reverência", confessou Egberto Gismonti. Gismonti avalia que a reverência precisa de educação. "Para pegar o gosto pelo Brasil e gostar de ser brasileiro é preciso pedagogia adequada desde os quatro anos de idade pelo menos. Para que a gente tenha o guardião que a gente quer e deseja, é necessário que a educação e a cultura sejam pensadas e executadas juntas e de fato", conclui.

Esse assunto, a cultura de mãos dadas com a educação e vice-versa, esteve presente em todas as mesas, desde Ouro Branco/MG, em julho desse ano, quando iniciamos as atividades do festival. É URGENTE fazer alguma coisa urgente! É ÓTIMO que a gente faça! O nosso fazer é o Vozes de Mestres!!! Essa é a nossa contribuição. Para 2010, podemos aprofundar (ainda mais) em nossas atividades os laços de amizade entre cultura e educação, com certeza... Afinal, eles são inquebrantáveis...


VOZES DE MESTRES - SEMINÁRIO
O seminário "Brasil: quem somos nós? E como chegamos a ser o que somos...?" cria raro lugar para a voz dos mestres de ontem, hoje e amanhã, promovendo encontros e conexões não menos raras. Quanto mais vivemos, mais descobrimos que tudo nessa vida é herança. Diz a canção do mestre Gonzaguinha: "Toda pessoa sempre é marca das lições diárias de outras tantas pessoas". Hoje andarilho sedento, amanhã fonte que saciará a sede de muitos. Assim foi. Assim tem sido. Assim é a humanidade "desde que o mundo é mundo", como dizem os antigos. Os saberes vão passeando de mão em mão, de gente em gente, de geração em geração. Criar um espaço para ver o Brasil passar fervorosamente, sem parar, é o que nos levou a "inventar" essa oportunidade de ternura e troca tão necessárias para curar a infeliz aspereza dos dias atuais...

Déa Trancoso a serviço do Festival Internacional Vozes de Mestres - CCBB Itinerante 2009, dia 11 de novembro de 2009, 19h, no Teatro Alberto Maranhão, em Natal/RN.

"O que eu acho mais bonito é que o Vozes de Mestres vai andando pelo Brasil plantando sementes de amizade e reverência!" (Egberto Gismonti, músico)

VOZES DE MESTRES: eu visto essa camisa!!!