domingo, 4 de outubro de 2009

Mesa redonda no Vozes de Mestres - CCBB Itinerante 2009 - Florianópolis





A mesa redonda em Florianópolis nos trouxe as presenças dos mestres Gentil do Orocongo e Getúlio Manoel, e, novamente, para a nossa alegria, do professor José Jorge de Carvalho, da Universidade de Brasília.

Mestre Gentil do Orocongo tem 64 anos e se apaixonou (palavras dele) pelo Orocongo aos nove, quando uma família de Cabo Verde chegou com o instrumento em Florianópolis. Ele é o único tocador, cantador e luthier de Orocongo América Latina que está vivo.

O Orocongo é um instrumento cujo som lembra o da Rabeca. É feito de uma cabaça grande, serrada ao meio, com um braço que possui apenas uma corda. À primeira vista, parece muito primitivo. Mas essa primeira conclusão não resiste a um segundo olhar, quando prestamos atenção à técnica que é empregada para tocá-lo. Quando comecei a prestar atenção em como os dedos de mestre Gentil passeavam pela corda, sem tocar o braço, percebi a delicadeza e a sofisticação que tinha de ser empreendida para obter melodias e harmonias satisfatórias.

"Naquela época, era porta com porta. A gente tinha vizinhos de verdade. Quando vi o Orocongo pela primeira vez, sendo tocado pela família de Cabo Verde, disse ao meu pai: eu quero um desse! Ele me olhou espantado: desse qual, menino?", lembra maroto.

"Aí, comecei a riscar o tal Orocongo lá de minha casa e o que que tocava, da família de Cabo Verde, riscava de lá da casa dele também. Nós morávamos porta com porta. Quando vi, eu já estava tocando nos cassinos do Rio Grande do Sul. Era meu distraimento. Quando, mais tarde, dei por mim, já não me via mais sem o Orocongo. Ele já era minha vida e eu já tinha amor por ele... Daí, para começar a fazer o Orocongo, foi um passo", diz emocionado.

"Hoje, toco e faço o instrumento, ensinando os que querem aprender o ofício. Ando viajando muito pelo Brasil. Recentemente, participei de uma turnê pelo SESC. Foi muito bom poder mostrar o Orocongo fora de Florianópolis. Quando cheguei em Salvador, os baianos disseram: como é possível que a gente não conheça esse instrumento, se todos os instrumentos da cultura africana vieram parar na Bahia? Eu respondi: pois é, esse aqui foi parar lá em Florianópolis para a minha alegria", conta.

Mestre Gentil alerta que é preciso não deixar a cultura popular morrer na casca. "O que as crianças têm hoje?", pergunta. E ele mesmo responde: "A morte. E nem ela é mais novidade, morre-se das maneiras mais banais. Todo dia está no jornal. Morre-se por qualquer coisa. Ter progresso não resolve nada se não tiver ninguém para viver esse progresso. Quem não tem memória, não tem nenhum futuro!", diz.

"Hoje em dia, nem o ovo tem mais gosto de nada, gente! Eu vivi num tempo bom, muito bom mesmo. Quem viu, viu. Quem não viu precisa pelo menos de alguém que possa contar como foi. Essa é a nossa missão", conclui enfático.

Já mestre Getúlio Manoel tem 58 anos e é pescador, músico e escritor. Desenvolve trabalho social com a comunidade de pescadores do Campeche, ao sul da ilha. Ensina a arte de preparar redes e tarrafas, coordena o projeto "Música no Rancho da Canoa" e contribuiu para a criação do projeto "Pescando Letras", do Governo Federal, que já alfabetizou mais de 500 pescadores nas regiões Norte e Nordeste do Brasil.

Faz parte também da história de mestre Getúlio Manoel uma coisa bastante interessante e curiosa. Ele é filho de "seu" Deca, histórico morador do Campeche, e sempre ouviu, desde criança, os relatos de seu pai sobre a passagem dos franceses pela ilha, especialmente de um tal de "Zé Perri", que não é ninguém mais, ninguém menos que Saint-Exupéry.

Seu pai, Deca, foi, sim, amigo do mítico criador do pequeno príncipe. Ele conta as saborosas histórias dessa amizade no livro "Deca e Zé Perri", lançado de maneira independente e já na segunda edição. Provavelmente, as histórias da aviação ligadas à sua própria história, à história de seu pai e às histórias do lugar onde nasceu, tenham influenciado sua ida para a Aeronáutica, na qual serviu como músico durante 20 anos.

Hoje mestre Getúlio Manoel divide seu tempo entre a pesca artesanal (principalmente da tainha) e o resgate da memória histórica do Campeche, além da escrita e da música.

"Acredito que o amor só significa alguma coisa quando é compartilhado", diz relembrando "Zé Perri", como ele agora também chama Saint-Exupéry. "Aprendi a fazer rede aos três anos. Hoje, ensino aos jovens o que sei. Passo para a frente. O aspecto social no Brasil ainda está muito doente. Nós ainda sentimos falta da mão amiga do governo local. Temos várias coisas ligadas à cultura popular dos anos 40 e 50 que estão esquecidas. Seria interessante que isso fosse para a sala de aula. É na educação que o povo se fortalece", diz veemente.

"Houve um lampejo no Brasil e agora a gente já sabe e aceita que existe música de negro também no Sul. Mas ainda há uma grande distância entre o esforço que a sociedade civil faz e a confiança que o governo deposita. E a gente só respeita o que a gente conhece profundamente. É nisso que se deve investir. Nas oportunidades de gerar conhecimento da história do Brasil para os brasileiros. Nem que seja para poucos interessados como estes que estão aqui a nos ouvir", opina.

"Lá no Campeche, tem uma porção de mãos estendidas, querendo repassar o conhecimento da cultura da pesca, por exemplo. Num país com uma população mais cidadã e mais esclarecida, isso prontamente seria aproveitado tanto pela sociedade civil quanto pelos governos. Mas, no Brasil, a coisa ainda é muito lenta. Ainda está restrita aos abnegados que se põem a resgatar a coisa feito heróis", desabafa.

O Vozes de Mestres vem cumprindo sua vocação que é dar voz aos mestres. Daqui, de ali, de todo Brasil. Nos diz, ao final, Mestre Gentil do Orocongo: "O progresso chegou, mas o terno de reis sumiu". São questões para a gente refletir e continuar caminhando na missão de, ao dar voz aos mestres, fazer surgir as estradas que possam ser formalmente pavimentadas com as belezas da cultura popular brasileira.

VOZES DE MESTRES - SEMINÁRIO
O seminário "Brasil: quem somos nós? E como chegamos a ser o que somos...?" cria raro lugar para a voz dos mestres de ontem, hoje e amanhã, promovendo encontros e conexões não menos raras. Quanto mais vivemos, mais descobrimos que tudo nessa vida é herança. Diz a canção do mestre Gonzaguinha: "Toda pessoa sempre é marca das lições diárias de outras tantas pessoas". Hoje andarilho sedento, amanhã fonte que saciará a sede de muitos. Assim foi. Assim tem sido. Assim é a humanidade "desde que o mundo é mundo", como dizem os antigos. Os saberes vão passeando de mão em mão, de gente em gente, de geração em geração. Criar um espaço para ver o Brasil passar fervorosamente, sem parar, é o que nos levou a "inventar" essa oportunidade de ternura e troca tão necessárias para curar a infeliz aspereza dos dias atuais...

Déa Trancoso a serviço do Festival Internacional Vozes de Mestres - CCBB Itinerante 2009 . dia 22 de setembro de 2009, 19h, no Teatro Álvaro de Carvalho - Florianópolis/SC

FOTOS DIANA GANDRA

2 comentários:

Osvaldo Pomar disse...

Olá Déa,

escrevo para lhe informar que,
infelizmente, na noite de ontem, nos deixou esta grande figura que é o Seu Gentil.

recentemente ele andava envolvido em uma porção de projetos, inclusive em um doc meu sobre a forma que utilizava para confeccionar o instrumento ...

uma pena.
saudações

Déa Trancoso disse...

vamos fazer uma homenagem a ele em belém, na abertura da mesa redonda de lá...
beijo seu coração...